DISCOS ÉPICOS: Memórias, Crônicas e Declarações de Amor

Rafael Martins
5 min readJun 11, 2021

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Capa do disco “Memórias Crônicas e Declarações de Amor” na capa vemos Marisa com a mão na testa olhando avoadamente para o horizonte esquerdo

Memórias, Crônicas e Declarações de Amor é o que podemos chamar de um disco blockbuster. É um disco feito para fazer imenso sucesso sem nenhum remorso, e assim fez.

É curioso pensar em como Marisa Monte conseguiu fazer um álbum tão popular e ainda assim tão autêntico quando olhamos para o que significava fazer sucesso no Brasil do ano 2000. O axé vivia sua grande massificação para além da Bahia na figura de Ivete Sangalo, o pagode humanizava homens negros que cantavam sobre ascender socialmente e conquistar o amor de mulheres brancas nos programas de domingo e bandas como O Rappa e Charlie Brown Jr. eram trilha sonora daqueles que se diziam transgressores mas amavam assistir “Malhação”.

Ainda assim, uma mulher madura de 32 anos e classe média alta parecia universal o suficiente para ser popular entre todos esses públicos cantando sobre amor de uma maneira quase infantil de tão pura. “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor” é o que podemos chamar de um disco blockbuster. É um disco feito para fazer imenso sucesso sem nenhum remorso, e assim fez. Da primeira à última faixa há um apelo inegável às grandes massas, mas com uma humanidade ao mesmo tempo tão próxima mas tão distinta na voz de Marisa. Marisa é uma das grandes vocalistas pop do nosso país. Ela canta como se fosse sua melhor amiga, sua colega da faculdade tímida e metalicamente afinada mas que abaixa a guarda quando se sente confortável em uma roda de comadres.

E em 2000 Marisa definitivamente estava confortável. Ela já tinha 11 anos de carreira, já tinha conseguido cravar seu nome na música popular brasileira com seus criticamente aclamados discos anteriores e tinha acabado de conquistar suas independência ao comprar todo seu catálogo fonográfico. Assim, ela se desamarrou das pressões comerciais e críticas e mergulhou fundo no pop, com todos os significados que essa palavra pode ter no Brasil. Ela jogou sua voz contra riffs de guitarra sintetizados em músicas como “Não Vá Embora” e “Cinco Minutos”. Ela flertou com sua afinidade pelo samba em “Abololô”, “As Gotas de Luar” e fez um romance de Eça de Queiroz ser um hit nas rádios com “Amor I Love You”. Marisa não precisava abrir mão de nenhuma parte dela mesma. Ela podia ter tudo. E teve, vendendo mais de um milhão de cópias, saindo de mãos cheias de premiações e vendo suas canções tocarem em todos os pontos cardeais tupiniquins.

Na virada do milênio, o pop nacional era mais conservador e recheado de bom-mocismo do que o ideal. A dupla Sandy &Júnior representava bem esses valores com seus hits caucasianos e virginais, e Marisa não era muito diferente. Mas, ao contrário da então namoradinha do Brasil, Marisa tinha uma capilaridade que Sandy não tinha. Ela era talentosa o suficiente para ser colocada ao lado de titãs da MPB como Gilberto Gil e Caetano Veloso, careta o suficiente para ser a queridinha de críticos um tanto quanto reacionários e descolada o suficiente para fazer sucesso entre a geração MTV. Marisa sabia o que ela representava socialmente, mas ela não se furtava de escapar disso. Talvez por isso um dos hits do álbum, “Gentileza”, fale da sua luta para preservar uma obra de rua de um artista andarilho do centro do Rio de Janeiro. Marisa conseguia embarcar com naturalidade nas classes mais populares porque, apesar de ser bem nascida, ela nunca foi colocada em uma redoma. Seu pai era diretor da Velha Guarda da Portela e ela naturalmente foi exposta ao samba desde cedo. Ela falava sobre o mundo que via e, felizmente, ela via além das praias da zona sul carioca. E por causa de sua criação no samba, ela não tinha medo de parecer tão passional ao ponto de soar quase insuportavelmente “brega”.

“Amor I Love You” é uma daquelas canções que capturam o espírito do tempo que foi lançada. Os vocais suaves de Marisa, acompanhados por também suaves acordes de violão e vocalizações celestiais abrem espaço para a interpretação heroica de Arnaldo Antunes. O contraponto entre os dois reflete o mesmo ponto de “O Primo Basílio”. Há beleza em um amor tão monótono, sereno e ocioso. Era o período de estabilidade econômica no país depois de anos de hiperinflação. Talvez Marisa fosse a musicista que conseguiu expressar a ânsia do país por estabilidade, por um país em que nós podíamos desacelerar e contemplar, assim como a novela “Laços de Família”, outro grande marco cultural da época com a proposta semelhante e que, coincidentemente ou não, “Amor I Love You” fez parte da trilha sonora. “Laços de Família” e Marisa representavam não o país que nós éramos, mas o que desejávamos ser e, de alguma forma, esse também era um ponto de vista do qual precisávamos.

No seu quarto álbum, Marisa não exatamente inventou a roda. Ela deu o que o público esperava dela, mas ainda assim, conseguiu colocar uma autenticidade que tornou o som gerado por ela aqui um ponto de referência: a interseccionalidade entre a MPB, o samba e o pop que geraria enormes movimentos na música pop nacional do século XXI. Definitivamente não existiriam Marias Gadús, Céus e Tulipas Ruiz sem esse álbum. A própria Marisa bebeu de novo da fonte que ela mesma criou no seu trabalho seguinte com Os Tribalistas. Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes inclusive participam ativamente da produção e composição de Memórias, mas nada seria suficiente sem o charme quase desinteressado de Marisa, que assim como em seu trabalho solo, é o espírito vivo e solar do trabalho dos Tribalistas. É o que faz Marisa aparecer e desaparecer da mídia com o mesmo furor do público, e que a faz encher estádios com apenas um simples anúncio na imprensa.

O olhar avoado e longínquo de Marisa na capa de “Memórias Crônicas e Declarações de Amor” define bem o tipo de artista que ela se tornou nos últimos anos: uma estrela pop tão além e tão alheia ao hodierno que nos fascina por imaginar o que ela esteja vivendo no seu batalhado e declarado Infinito Particular.

Nota: 8.0/10

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